Quilombo da Barrinha São Francisco de Itabapoana, Região Norte Fluminense
O aroma que exalava das ervas medicinais e das especiarias que temperavam o peixe se misturava às sonoridades das histórias e dos versos dos jongos. Esse acontecimento singular, que não pode ser traduzido em palavras, aconteceu na casa de Dona Lídia, no Quilombo da Barrinha, no Município de São Francisco de Itabapoana. Que sorte essa experiência ser captada pelos sentidos e ficar guardada em nossos corpos!
A residência de Dona Lídia, presidente da Associação Remanescente do Quilombo de Barrina, situa-se na comunidade da Barrinha, em um quilombo à beira-mar, onde ela e mais de 80 famílias vivem. Ao lado desse local, em que hoje estão as terras da comunidade, havia um cemitério dos chamados “pretos novos” no período escravista, onde eram sepultados os
corpos dos negros recém-chegados da África que não suportavam a penosa travessia do Oceano Atlântico. Nesse espaço, ao longo de várias gerações, estabeleceu-se uma comunidade de parentesco.
Feijão, preto, ensopado de mamão e abóbora, mocotó, abóbora com carne foram alguns alimentos que Dona Lídia recorda da infância. Entretanto, o peixe era o elemento central nos pratos cotidianos, sendo consumido, até mesmo, durante o café da manhã: “Na minha casa, era um fogão de lenha [...]. Botava [a mãe] uns morobás na chapa, umas carazinhas; aí, depois a minha mãe fazia uma água de sal, um depósito, uma água uma cumbuca, porque nem prato a gente tinha. Aí botava o peixe lá, salgava, aí deixava lá direitinho, tampadinho pra de manhã. Aí, de manhã, meu pai, a gente acordava, era café de cana, o café não era de açúcar [...]. Aí, meu pai, a gente já tinha moído a cana no moinho; aí sentava todo mundo na mesa, não era mesa, era um banco com umas tábuas em cima, ali era nossa mesa. [...] Meu pai botava um café de cana, eu não gostava de café de cana, porque eu sempre, eu fui pobre, eu sou pobre, mas eu tinha um espírito que ia longe.”
Sempre que se reúnem, o peixe ensopado marca presença: “Tem um senhor, Ademir, que também é uma pessoa antiga da nossa comunidade, que quando eu vou na casa dele é a maior festa, porque o dia a dia da gente é corrido. E aí, quando eu vou, é aquela tradição que tem, que junta um pouquinho.” Referindo-se desta forma quando se chega à casa de Seu Ademir, Dona Lídia diz: “Olha, eu tenho um peixinho ensopado.” Segundo ela, para fazer o ensopado, os principais peixes são traíra, sairú,, cará e morobá.
A energia contagiante de Dona Lídia ensina que a vida tem remédio, mas, for necessária uma ajudinha extra, ela recomenda as ervas que estão no quintal de sua casa. Capim limão e boldo para problemas digestivos; cidreira pra pressão alta e ansiedade; folha de abacate para pedra nos rins; folha de amora para reposição de hormonal; arnica para boa cicatrização, entre outras. Sem medo, conforme o jongo por ela cantado, “vou botar meu tambor na ladeira porque quero aprender a rolar, aprender a rolar...”.