Quilombo Rasa Armação dos Búzios, Região Baixada Litorânea
Em Rasa, comunidade que fica em Armação dos Búzios, região dos Lagos do Estado do Rio de Janeiro, o tom do encontro foi dado pelo pôr do sol, e a melodia do cardápio musical veio da sonoridade imposta pelo vento. Contudo, foi a voz afinada de Dona Uia que encheu o ambiente de harmonia. Com risonha proficiência, ela rege uma orquestra de histórias, versos, jongos e, obviamente, inúmeras receitas, os quais explicitam os vínculos estabelecidos entre os moradores de Rasa e as terras que tradicionalmente habitam. A
história dessa localidade relaciona-se a dois processos articulados no período anterior e posterior à abolição da escravatura.
Antes da abolição, os relatos apontam para a existência de um quilombo estabelecido na região entre as mediações do Morro do Arpoador, da Praia dos Negros e da Praia Rasa, no limite com a Cidade de Cabo Frio. Alguns moradores de Rasa descrevem esses espaços como lugares para onde se dirigiam os negros escravizados: tanto aqueles que conseguiam fugir no momento do desembarque dos navios negreiros, quanto os demais que escapavam da vigilância dos feitores.
Toda essa história oficial é traduzida por Dona Uia por intermédio da relação que estabelece com a culinária. Nascida na comunidade, há 72 anos, ela conta que partiu em direção à Cidade do Rio de Janeiro, aos 16 anos, para trabalhar. Naquele momento, começou a atuar na cozinha profissionalmente. Além disso, no que se refere às lembranças da infância, afirma não haver arroz; comiam-se feijão, abóbora, quiabo e peixe. Com certa nostalgia, rememora: “eram felizes na roça porque não havia vaidade [...]. A gente era tão feliz e não
sabia”.
Nas receitas que ensina, peixes, moluscos e mariscos ganham destaque. Merece atenção a forma como descreve a sarandagem, receita do tempo da escravidão: “A gente vai ali na praia, a gente pega todos os tipos, sacutá... É, nega minha, é marisco, mais o que é unha de veio [...]. Isso tudo é coisa que a gente pega na praia, é sururu de cavalaria. A gente pega isso tudo, junta. Quando chega na cozinha com as panela direitinho [...], vai lavando, vai lavando. Precisa ser bem limpo, bem lavado, porque ele amarga também [...]. Bota na pressão porque é duro, né? Cozinha tudo e aí a gente tem todos os ingredientes, bota legume [...].”
A receita tem relação com os ancestrais, conforme Dona Uia esclarece: “Ela é a tradição de nossos avós, bisavós, porque eles já faziam.”
Não obstante a receita da sarandagem ter de esperar a lua certa - que rufem os tambores! -, a moqueca de peixe de Dona Uia está posta à mesa. Ao final da degustação, resta aplaudir e regozijar.