Quilombo Cabral Paraty, Região da Costa Verde
Em tempos de transformações tsumâmicas que tensionam a continuidade de práticas camponesas, os hábitos alimentares, apesar incorporarem mudanças inerentes à dinâmica cultural, funcionam como âncoras para a manutenção de valores costumeiros. No Quilombo Cabral, Seu Domingos, de 73 anos, que há dez anos atua como liderança do grupo,
está no leme da embarcação e posiciona a rota da bússola para valorizar as permanências: “[...] antigamente, se fazia as coisas pra durarem. Hoje, já fazem pra durar pouco”.
Nesse sentido, a transmissão da experiência torna-se uma tática cotidiana para driblar as marés mais aceleradas. Conseqüentemente, personagens como Seu Domingos são protagonistas essenciais, haja vista que ele considera que os saberes relativos ao artesanato, por exemplo, devem ser transmitidos de geração para geração. Com base nesse valor, ele guarda, com zelo, o fuso de madeira que construiu: “O fuso eu fiz por necessidade, não podia comprar e precisava. Então, tive que aprender a fazer [...]. Vamos arrumar madeira, e eu mostro pra você como é que faz, participo. E não ensino a pessoa falando não, porque tem muita gente que fala faz assim, assim, assim..., né? O melhor de aprender é ver fazer, mostrando como é que faz, né?”
Igualmente artesanal, o trabalho com a terra exige paciência e dedicação, como também exemplifica Seu Domingos ao falar sobre o cultivo do feijão: “É colhido aqui mesmo [...]. Esse feijão é velho. Em Paraty, é mais velho do que andar pra frente. [...] Planta, dá também com três meses, e aqui a gente espalha no terreiro, né? Mete a vara nele [...].”
Além das artes da terra, o Quilombo Cabral é conhecido em virtude das artes da culinária. Na casa de Dona Maria e de Seu Benedito, preparou-se o feijão Serra Azul (tutu) com arroz, jiló e costela de boi. Enquanto Dona Maria cozinhava, Fábio, filho de Seu Benedito e enteado de Dona Maria, mencionou as transformações ocorridas no preparo desse prato.
Segundo ele, antigamente, comia-se carne de caça, que acompanhava o feijão. Mesmo com a mudança da tipologia da carne, por conta da necessidade da preservação do tatu, o modo de preparo se manteve: “E cozendo, cozendo até secar a água, se não tiver ainda legal no garfo, bota mais um pouquinho. Vai virando, virando, virando... e fica uma carne assada de panela, né? Isso é muito bom!” Em relação aos temperos, conclui: “Alho, hortaliça, alfavaca, manjericão, a salsa, hortelã também e alho, né? Cebola, que é o coração de qualquer comida. Cebola, isso sempre tinha com fartura lá em casa.”
Nesse ínterim, Seu Benedito, trazendo o jiló para ser preparado por Dona Maria, une-se à conversa para ressaltar as festividades existentes no quilombo, como, por exemplo, a celebração em homenagem a Nossa Senhora de Sant'ana, em 26 de junho.
Assim, por intermédio de um simples prato, pode-se entrever como a alimentação é uma prática tensionada entre os maremotos que impulsionam as rupturas e as ondas mais tranquilas sugeridas pela permanência das práticas.